As coisas mudam, Ana Sofia

Il Assessore


Num andar desajeitado próprio de quem não tinha mais de metro e sessenta de altura mas, em compensação, juntava bem mais de 80 quilos num metro de largo, a mulher foi estrategicamente afastada para uma conversa a despropósito mas propositada para me deixar entrar enfermaria adentro sem suscitar perguntas. De olhos arregalados, espantados, diria, ela estava ali de babygrow rosa, no carrinho da Chico, chucha e muita confiança na assistente social que me acompanhava e pouca, nenhuma decerto, em mim.
Quando me ajoelhei a seu lado para lhe ficar ao nível da face esboçou um beicinho e arregalou os olhos como se a figura de um homem lhe trouxesse um sinal de alerta. Já me acontecera antes, vezes tamanhas, quando decidia – sabe-se lá porquê – passar tardes a fio junto dos filhos das mulheres presas em Tires. Os putos berravam sempre sendo-me então explicado que não estavam, numa prisão de mulheres, habituados a ver homens. E os pais, nem sequer os conheciam.
Ali era diferente: definitivamente, pela história que trazia atrás de si, aquela bebé não gostava de homens porque eles eram portadores de porrada. Não foi difícil, ainda assim, conquistar-lhe a confiança: de joelhos, já se disse, estendi-lhe o indicador que agarrou como que a dizer “não me faças mal” e ronronou com o pescoço à volta de si num gesto de mimo que ainda ninguém lhe conhecia. Fazendo uso das manhas de pai – se bem que com 17, o miúdo lá de casa já tenha pouca disponibilidade para mimos – um afago com a mão livre – a outra estava bem presa pelos deditos numa garra pouco maior que uma noz – abriu caminho para uma conversa longa e bastante para me deixar vidrar os olhos e justificar uma vontade tamanha de a trazer para casa num fim-de-semana que desejaria não acabar tão depressa.
Falámos. Falámos muito. Falámos tanto que depois de um dedilhar da face e um cuidado tamanho em não lhe tocar nem nos braços nem nas pernas – aqueles com os artefactos que permitem a canalização de suprimentos e estas a solidificar das cinco ( cinco!) fracturas com que chegou ao hospital, diz-se, depois de sovada pelos pais – já dava pequenos impulsos na cadeira a pedir um colo proibido, para mim, que a podia desconjuntar – tal são as partes ósseas fragilizadas pelos bichos brutos. Ou pelo pai. Ou pela mãe. Ou por quem quer que seja que não se sabe quem é e só se saberá quando o ministério público de Sintra tiver tempo para mandar investigar.
Sabe-se isso sim, que a Ana Sofia tem nome, seis meses e entrou-nos porta dentro vítima de maus tratos. Sabe-se, já se sabe, que a Ana Sofia vai ser entregue a família de acolhimento para adopção. Algo que nem sequer parece preocupar a mãe - que entretanto já está se presume prenhe. É a terceira vez: a primeira filha foi-lhe retirada por negligência; esta vai pelo mesmo caminho por negligência e violência (ou cumplicidade na violência); a terceira, a que vem aí, logo se verá.
Quando saí da enfermaria – para a mãe entrar – o embevecimento pela Ana Sofia era proporcional à raiva que tinha para com aquela mulher. E nem quando ela aconchegou a filha ao peito, para lhe dar de mamar ao mesmo tempo que a Ana, com a mão do braço não canalizado, afagava, de cima para baixo em pinceladas perfeitas, a parte de cima do peito da mastronça, mudei o sentimento. Sobretudo, porque soube que depois de cada tareia de deixar marcas, o choro da pequenita era sufocada na teta da mãe. Devia ter estranhado, desta vez, que a mama lhe chegasse à boca depois dum momento de festas e mimo.
As coisas estão a mudar, Ana Sofia. As coisas estão a mudar.


nota: texto d'um colega de trabalho, il assessore, que entendi valer a pena mostrar

Comentários

Cecília Longo disse…
Ai que forma terrível de violência... 6 meses e já conheceu isto!
Mas na verdade ainda à esperança que esta criança tenha direito a ser criança ..........e feliz!!
Desejo tudo de bom para ti Ana Sofia!
ps:
e espero q a justiça seja operante e rápida para os carrascos... violencia sobre 1 criança de 6meses.........q horror!!
Cristina disse…
sparty

o texto não é meu, foi escrito por um colega. no entanto, penso que o que ele quer dizer é que já se vão detectando e resolvendo muitas situações destas.
estamos habituados a ver na comunicação social as situações mais dramáticas, com fim trágico, mas apesar de tudo, já há muito mais sensibilização para o problema, tanto da parte dos hospitais e outras instituições, como da população em geral, infelizmente, a divulgação desses casos acaba por fazer a sua função...

devagar amigo, mas vai-se avançando :)

1 beijo
Cristina disse…
sparty

é nossa obrigação, dos que lidam com as situações, acreditar nisso, não é??

beijinhos
wind disse…
Por mais que tente racionalizar e pensar não entendo os monstros que fazem isso às crianças!
Ainda bem que a Ana já está encaminhada e esperemos que ela nunca queira conhecer os verdadeiros "coisos" biológicos.
E vem mais outra criança para sofrer maus tratos. Porque não prendem os que o fazem?
beijos
Cristina disse…
sparty

obrigada, um beijo grande para ti, boas leituras :)
Cristina disse…
wind

infelizmente, ainda qualquer um pode ser pai e mãe....

há pessoas que deviam ser estirilizadas compulsivamente :(

beijinhos, bom domingo :))
Anónimo disse…
assustadoramente, desesperadamente verdadeiro...
doeu-me cá dentro, apesar de ser uma realidade que conheço
beijos
easy
Cristina disse…
easy

doi sempre enfrentar estas realidades...

espero que realmente as coisas vão mudando, não com a celeridade desejável, mas mudando.

beijocas

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