da actualidade





Deliciem-se com este texto de um blogger que assina Cezário Camelo no Clube dos Terríveis. O texto faz referência a vários personagens locais, mas fica ao critério de cada um a devida adaptação :)

Eu adoro a estética da corrupção. Adoro a semiologia dos casos cabeludos sob suspeita, adoro a reacção dos implicados, adoro o vocabulário das defesas, das dissimulações, as carinhas franzidas dos acusados na TV, ostentando dignidade, adoro ver ladrões de olhos em brasa, dedos espetados, uivos de falsas virtudes e lágrimas de crocodilo.
Todos alegam que são sérios, donos de empresas "impecáveis". Vai-se olhar as empresas, e nunca nada rola normal, como numa padaria. As empresas sempre são "em sanfona", uma dentro da outra, sempre têm holdings, subsidiárias, coligadas, são firmas sem dono, sem endereço, sem dinheiro, sem obras, todas vagando num labirinto jurídico e contábil que leva a um precioso caos proposital, pois o emaranhado de ladrões dificulta apurações.
Me emociona a amizade dentro das famílias corruptas, principalmente aqui na terra das Icamiabas. Oh, Deus! Aqui, creio eu, há mais amor do que entre picaretas paulistas ou cariocas. Aqui existe uma simbiose maior no parentesco, mais calor humano, mais "fio de bigode". São inúmeros os primos, tios, ex-sócios, ex-mulheres que assumem os contratos de gaveta, os recibos falsos, todos labutando unidos, como trombadinhas sincronizados. Baixa-me imensa nostalgia de uma família que não tenho e fico imaginando os cálidos abraços, os sussurros de segredo nos cantos das casas avarandadas, o piscar de olhos matreiros, as cotoveladas cúmplices quando uma verba é liberada pela Seinf em 24 horas, os charutos comemorativos. Tenho inveja dos vastos jantares à tripa forra, repletos de sarapatéis de tartaruga, vinhos finos, gargalhadas, piadas infames, ditos espirituosos, sacanagens tão jucundas, tão "coisas nossas", tão "manaós", que me despertam ternura pela preciosidade antropológica de imagens como a colecção de carros importados do Cordeirinho, a cabeleira loura do delegado He-Man (lembram?), a calvície precoce do Ricardo da Sefaz, o olhar enviesado de Amazonino, o visual desleixado de Otávio Raman, as sobrancelhas do Gilberto Benzecry e a pasta surrada do Zé Lopes. Esses signos e símbolos muito nos ensinaram sobre o Amazonas real.
Adoro também ver as caras dos canalhas. Muitos são bochechudos, muitos têm cachaços grossos, contrastando com o style dos populares magros de seca, de fome, proletários chiques, elegantérrimos pela dieta da miséria. Todos acumulam as mesmas riquezas: piscinas, fazendas, mansões, lanchões, flats em Miami, contas em paraísos fiscais. Todos têm amantes, todos têm mulheres desprezadas e tristes, com filhos oligofrénicos, deformados pelas doenças atávicas dos pais e dos avós. Aprecio muito os bigodões e bigodinhos. Nas oligarquias, eles não usam a bigodeira severa de um Olívio Dutra, babando severidade, com um eco de stalinismo e machismo gaúcho, não. Os bigodes corruptos são matreiros, bigodes que ocultam origens humildes criadas à farinha d'água e jaraqui frito, na clara ocultação de um racismo contra si mesmos, camuflando os ancestrais brancos cruzados com índios e negros, raquíticos por séculos de patrimonialismo.
Também gosto muito do vocabulário dos velhacos e tartufos. É delicioso ver a ciranda das caras indignadas na TV, as juras de honestidade, é delicioso ouvir as interjeições e adjectivos raros: "ilibado", "estarrecido", "despautério", "infâmias", "aleivosias"... São palavras que ficam dormindo em estado de dicionário e só despertam na hora de negar as roubalheiras. São termos solenes, ao contrário das gravações em telefone, onde só rolam palavrões: "Manda logo a porra da grana pro caralho do banco, que aquele boiola é um grande filho-da-puta e pode tá de cruzeta com o vigário-mor!”, “Fala praquele cuzão deixar de frescura senão eu vou foder a mãe dele e daquele viado que ainda não autorizou o aditivo”.
Outra coisa maravilhosa nos canalhas é a falta de memória. Ninguém se lembra de nada nunca: "Como? D. Sirleide, aquela mulher ali, loura, popozuda, de minissaia? Não me lembro se foi minha secretária ou não". E o aparente descaso com o dinheiro? Na vida real, eles cheiram a grana como perdigueiros e, no entanto, se justificam: "Ihhh... como será que apareceu um milhão de reais na minha gaveta? Nem reparei. Ahhh... essa minha memória!... Preciso urgentemente voltar a tomar Fosfatol..."
Amo também ver o balé jurídico da impunidade. Assim que se pega o gatuno, ali, na boca da cumbuca, ali, na hora da mão grande, surgem logo os advogados, com ternos brilhantes, sisudos semblantes, liminares na cinta, cínica serenidade de cafajestes e, por trás deles, vemos as faculdades malfeitas, as chicaninhas decoradas, os diplomas comprados.
E logo acorrem os juízes das comarcas amigas, que dão liminares e mandados de segurança de madrugada, de pijama, no sólido apadrinhamento oligárquico, na cordialidade forense e freguesa, feita de protelações, desaforamentos, instâncias infinitas, até o momento em que surge um juiz jovem e decente, que condena alguém e é logo chamado de "exibicionista"... Adoro as imposturas, as perfídias, as tretas, as burlarias, os sepulcros caiados, os cantos de sereia, as carícias de gato, os beijos de Judas, os abraços de tamanduá.
Adoro tudo, adoro a paisagem vagabunda de nossa vida cabocla, adoro esses exemplos de sordidez descarada, que tanto nos ensinam sobre o nosso Amazonas velho de guerra. Sou-lhes grato pelas sujas lições de antropologia, por estas pepitas genuínas de verdadeiros "gilbertos freyres" da endêmica sem-vergonhice baré.
Só um sentimento me atormenta o coração: não sei porquê, também me passa pela cabeça a imagem dos corruptos chineses condenados e ajoelhados no chão, com o soldado alojando-lhes uma bala de fuzil na nuca. Penso nestas cenas e sinto uma grande inveja da China. Por que será, Irmão Paulo? Por que será, meu caro Fran Pacheco? Por que será, minha doce Ishtar dos 7 Véus? Ah, mas se não souberem também, foda-se!

Comentários

Anónimo disse…
Muitas personagens que nos são bem familiares encaixam perfeitamente neste texto delicioso. Aliás, isto é a nossa realidade de todos os dias. Tão igual que assusta. Será uma praga mundial?

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